segunda-feira, 22 de junho de 2009

Carta de um visionário


“Quando jurei meu amor eu traí a mim mesmo
sem saber que ninguém é feliz neste mundo tendo
amado uma vez, uma vez...”
Raul Seixas.

É com grande prazer, verdade e sinceridade que lhe escrevo esta carta, sem querer, contudo, induzir a alterar o seu estado de espírito, que como sei já sei “pertence” a uma outra realidade. Raramente paramos para pensar acerca dos sentimentos do ‘outro’, ainda que este ‘outro’, sofra de algo que só tempo pode reparar, muito embora as cicatrizes pereçam. Esta carta poderia ser um poema, entretanto, não sei escrever em versos. Somente a prosa me conduz à totalidade de meus sentimentos revelando ao mesmo tempo a dimensão poética da mensagem. As pessoas pelas quais interessamos e definitivamente gostamos, irradiam de certa forma uma energia misteriosa e fantástica. Sem saber porque, nos entregamos aos nossos devaneios fazendo com que eles nos transportem a um mundo que só pode ser vivido em primeira pessoa.


Sei que ficará surpresa ao ler o conteúdo desta carta e talvez não serei mais digno de ser seu amigo. Talvez a amizade, quando coexiste com um sentimento de amor indesejável, é análogo a uma mistura heterogênea, em poucas palavras, não se misturam. “As pedras estão chorando sozinhas no mesmo lugar” já dia Raulzito, e continuarão a chorar, pois o ‘objeto’ de seu amor não se preocupa com o seu lamento, nem sequer quer saber por que chora, apenas frisa, já que a sua verdadeira capacidade de amar foi mutilada: “Você encontrará a sua alma gêmea”. Talvez a invenção da “alma gêmea” seja uma das coisas mais mesquinhas da nossa civilização; - Por que uma pessoa tem que necessariamente pertencer a outrem? – De fato somos propriedade privada de alguém? – Pelo que eu saiba, uma pessoa pertence única e exclusivamente a si mesma. Os homens e mulheres de nossa civilização estão equivocados ao confundir pessoas com coisas. É isto que infelizmente entendemos por amor; um homem e uma mulher que ocasionalmente se conhecem, se apaixonam e excluem o resto do mundo em sua volta. E uma vez nesta armadilha, vêm os filhos, a propriedade e o estancamento das relações amorosas. Digo ‘relações amorosas’ no sentido de uma nova experiência, entretanto verdadeira.


O vulgo está habituado a crer que toda experiência extraconjugal é desonrosa e imoral; costumam atribuí-la como traição. Os homens costumam “trair” suas parceiras, para poder “apimentar” a relação e assim sair da rotina, as mulheres por outros motivos os quais a maioria desconheço, mas é fato de quando fazem é para vingar o eventual “pulo de cerca”. É verdade que tais atitudes, na maioria das vezes, não colaboram nada para sanar o problema, apenas incentivam novas práticas que quando descobertas, acarretam uma crise no ambiente conjugal e, no pior das hipóteses, a dissolução da união. O problema maior, não é se tais práticas acarretarão na melhora ou na piora da relação do casal; o problema verdadeiro reside na natureza da relação, que impossibilita homens e mulheres de novas relações intersubjetivas no terreno da sexualidade. A experiência amorosa na cultura ocidental é uma espécie de castração do amor. Todos os casais crêem-se donos de seus parceiros, pois a forma mesquinha de se amar alguém é uma apropriação; é o monopólio do corpo do outro pelo outro. Uma vez diluído enquanto indivíduo, o amado se crê como propriedade do amante, e o amante por sua vez, proprietário do amado, não podendo jamais transcender esta situação.


Você deve a esta altura estar pensando, que eu esteja incentivando todas as pessoas a abandonarem seus parceiros e como se diz por aí “cair na vida”, nada disto. Gostaria apenas que entendesse, que as pessoas as quais amamos, não são necessariamente as únicas e verdadeiras; muitas vezes repetimos esse jargão, devido à brevidade de nossas vidas. Imagine se as pessoas pudessem viver duzentos, quinhentos ou até mil anos, elas teriam uma vida afetiva extremamente rica. Mas os poetas insanos e outros apologetas literários e mesmo filosóficos, insistem na idéia de um único amor da “outra cara da laranja” perdida em algum rincão deste mundo esperando o “grande encontro”. Se assim fosse, as viúvas e os viúvos jamais amariam novamente, apenas alimentariam a necrofilia do falecido amor. O amor não pode ser necessariamente de natureza exclusiva e sim inclusiva. Homens e mulheres estão presos a uma estrutura ideológica torpe e de má fé e ainda assim enaltecem essa mentira e fazem-na dela o seu escudo. Sei que muitas pessoas diriam se lessem essa carta: “Ah! Mas o meu marido, meu namorado, meu noivo, meu amante me dá a liberdade que eu preciso, ele não interfere no que eu faço”. Mentira! – Seu corpo é do monopólio deste e seus sentimentos também. Isso que os amantes chamam de liberdade não passa de um eufemismo para dissimular o verdadeiro caráter da relação que é a da posse e seu correlato, o ciúme. Analogamente a relação amorosa na nossa cultura se parece muito com relação que temos com os nossos chinelos, roupas e outros objetos de valor. É certo, dirá você, que foi livre para escolhê-lo, e realmente o escolheu e com este a sua maneira de viver. Já disse Sartre “O homem está condenado a ser livre”, entretanto, essa mesma liberdade pode ser a sua limitação. É também sensato o que disse Aristóteles: “Todo homem nascido para escravo nasce para escravo, nada é mais certo: os escravos tudo perdem em seus grilhões, inclusive o desejo de se livrarem deles; apreciam a servidão, como os companheiros de Ulisses estimavam o próprio embrutecimento. Portanto, se há escravos por natureza, é porque houve escravos contra a natureza. A força constituiu os primeiros escravos, a covardia os perpetuou”.


Praticamente ninguém acredita ou se comporta sistematicamente como monogâmico, mas a hipocrisia das relações a dois insiste em dizer o contrário. Potencialmente, ninguém deseja “trair” o outro, até que a oportunidade lhe favoreça. Entretanto, não é desse tipo de experiência que eu quero me referir, o que analiso é algo de maior profundidade e significado, corroborando o que disse os sociólogos Ruston e Della Roy, “o maior bem da existência humana são os relacionamentos interpessoais profundos, tantos quantos sejam compatíveis com a profundidade”. Porém só o ente humano que se libertou das amarras da cultura e da tradição e que tem responsabilidade e maturidade intelectual suficientes, consegue realmente efetuar essa façanha, que a meu ver, representaria a maior revolução sexual da história da humanidade desde a pílula anticoncepcional e da mini-saia. Seria a possibilidade de realizarmos o verdadeiro amor livre. O verdadeiro amor livre não é a simples relação aberta, que alguns casais moderninhos já praticam; não é tampouco, um comportamento promíscuo que muitas pessoas desinformadas querem que seja lícito e justificável, e muito menos, aquelas relações em que o marido ou a mulher dito liberais dizem fazer como: deixar o marido jogar o futebolzinho, sair com os amigos para os botecos e etc, ou aquele marido bonzinho, que aceita as amizades masculinas da esposa ou deixa que ela saia com as amigas de solteira para se divertir. Amor livre é a capacidade ilimitada das relações humanas; é o amor que não se resume a um “eleito” ou uma “eleita”; é o dom de se abrir para quem verdadeiramente nos quer, sem necessariamente excluir outrem.
Se um dia as pessoas pudessem entender, não haveria mais adultério, nem prostituição, nem crimes cometidos por parceiros ciumentos. Como a amizade, seria a possibilidade incessante de se renovar e se enriquecer enquanto aprendizes da vida. Não é comum ciúme na amizade, porque nesta, tratamos as pessoas como singulares e individuais. Não a vemos como ‘coisas’ que nos pertencem, porque o amigo nos quer o bem e o bem anda de mãos juntas com a liberdade. O ‘meu’, a ‘minha’, o ‘teu’ a ‘tua’, seriam apenas expressões arcaicas de um léxico ultrapassado. As relações de caráter monogâmico seriam verdadeiramente opcionais podendo facilmente ser revogadas. Não haveria espaço para a solidão e o desamparo. Mas para isso, deveria desaparecer a propriedade privada, pois é nela que a família moderna se alicerça e com ela os problemas da divisão dos bens. Só numa sociedade de homens verdadeiramente livres é que o amor livre poderia se disseminar. Na sociedade atual não pode haver amor verdadeiro, porque todos estão submetidos a uma relação de débito e crédito. Os homens vêem as mulheres como objeto de adorno para fantasiar os seus desejos e saciar a sua antropofagia simbólica, eles apenas querem “comê-las”; - fulana é um filé, beltrana é gostosa. As mulheres só precisam do homem para provê-las ou para saciar o seu egoísmo biológico que é ter um filho. Uma relação só tem sentido para a maioria das mulheres se vier acompanhada de um filho. O homem quase nunca é um fim para mulher na relação amorosa e sim um meio, e fazendo isto, não o ama. Tampouco ama o filho, pois este faz parte de um egoísmo quase que instintivo, pois dando luz àquele, poderá usá-lo como “moeda de troca” chantageando de todas as maneiras o seu parceiro. Estatisticamente falando, grande parte das separações no mundo moderno, se dá com o nascimento do primeiro filho. Não que a idéia de ter filhos é necessariamente má, mas um filho nunca pode ser causa de uma relação e sim na melhor das hipóteses a conseqüência.


Não podemos mais fechar os olhos e ignorar a decadente relação amorosa que homens e mulheres insistem em continuar. Não podemos mais acreditar que isso seja o verdadeiro ingrediente da felicidade. Temos sim, que forjar um novo homem, uma nova mulher, livres do medo de amar, livres do medo de experimentar. A energia criativa da humanidade se resume na eterna renovação de costumes. Só o homem criativo e sem temor pelo novo pode sobreviver às intempéries da cultura. Você provavelmente nunca escutou isso de um homem, porque este homem que lhe escreve e te ama, se livrou das amarras do rebanho e se aventurou num novo projeto, que talvez você nunca irá compreendê-lo. Nós estamos acostumados a venerar entidades mortas: deuses mortos, homens mortos, relações mortas, isso é uma antiga peça. O amor que tanto acreditamos e vivenciamos é sufocante. Como posso realmente amar alguém se faço dele o meu servo? – Como posso realmente amar alguém se o submeto a uma rotina? – “Até que a morte os separe”, profere o sacerdote. Resumindo: Não poderás amar nunca mais ninguém, e se por ventura amar, deverá excluir o seu antigo conjugue. Um será carne da carne do outro, ao resto do mundo a entrada é proibida. Em poucas palavras, o fluxo da vida, o devir está em estado de coma, pronto para morrer.


Sei que lerá esta carta, ficará momentaneamente confusa, remoerá algumas idéias, contestará e até mostrará ao seu noivo. Juntos rirão do conteúdo e chamarão o autor de louco. Seu noivo poderá ter uma crise de ciúmes e desejará me agredir, ou me ver no inferno. Na estreiteza de sua torpe inteligência, eu sou um ladrão que quero lhe roubar, tirando algo que tem um valor inestimável, que é você. Só que ele não imagina que eu, não quero roubar ninguém de ninguém. Não sou dono de ninguém, como ninguém é meu dono. Sou “casado” com a virtude e “amante” da liberdade. Sou apenas fiel a um sentimento que não consigo conter, e ele é verdadeiro, tão verdadeiro que me encorajei a dizer essas verdades sem o temor da opinião alheia.


Acredito que poucas pessoas nesse mundo, que são realmente sinceras e honestas, poderão atingir este nível de consciência porque a maioria de nós teme o desconhecido ou a perda do conhecido. Mas só os sonhos podem quebrar os modelos e inaugurar novos paradigmas, como na canção de John Lennon: “Você pode até dizer que eu sou um sonhador; mas eu não sou o único”. Despido-me aqui com uma certa ponta de melancolia, sabendo que dificilmente se sensibilizará com estas verdades e voltará à sua vida ordinária se encarcerando na sua relação.


A todos os amantes abandonados à própria sorte, desamparados e escurraçados pela lógica do egoísmo.

Magnificus, nesse crepúsculo de primavera no quinto ano do terceiro milênio.


Obs: o autor dessa carta nunca mais viu e teve noticias de sua amada. Ela ignorou tudo que ele disse, casou-se e o esqueceu para sempre.